Dalton Trevisan era um ruminador, diz Caetano Galindo
Coorganizador da antologia "Educação sentimental do vampiro" afirma que escritor curitibano construiu uma obra singular sem perder a reflexão sobre sua escrita
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Siga noProfessor da Universidade Federal do Paraná e tradutor premiado, o curitibano Caetano W. Galindo decidiu percorrer novamente toda a obra de Dalton Trevisan antes de organizar, com o diretor teatral Felipe Hirsch, a antologia “Educação sentimental do vampiro”. E, diversas vezes, se surpreendeu com o que (re)leu.
“Por se tratar de um escritor muito singular, com uma muito forte, a gente cria uma imagem razoavelmente uniformizada com o ar das décadas. Mas, ao ler tudo em ordem, você descobre uma imensa variedade, o quanto ele mudou de livro para livro”, comenta Galindo ao Pensar do Estado de Minas. “É muito impressionante perceber o quanto ele depurou a linguagem, ou por diversas fases temáticas e técnicas, mas sem jamais perder uma firme”, afirma.
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Autor de livros sobre a língua portuguesa como “Latim em pó” e “Na ponta da língua”, Caetano Galindo também destaca a “precocidade” de Trevisan na abordagem de alguns temas. “O homoerotismo, por exemplo, aparece muito cedo na obra dele. E de maneira absolutamente não caricata, nem depreciativa ou exótica, simplesmente como fato da vida. Em alguns casos, ele estava décadas à frente do mainstream da literatura brasileira”, acredita o organizador da antologia, um dos primeiros lançamentos da Todavia para celebrar o centenário de nascimento do autor.
Para Galindo, curitibano “nascido, criado e mofado na cidade”, Dalton Trevisan é “o suco da alma curitibana”: “As perversões, as chatices, o mau humor, a obsessão pela própria cidade, o fascínio por essa cidade que a gente adora odiar, tudo está sintetizado na obra dele a ponto de, depois da morte, eu ter sentido uma considerável orfandade, tipo: ‘Putz, agora a gente vai ter que se virar sozinho’, não o teremos para dizer o que é ser curitibano, para onde essa cidade tá indo, do que a gente pode reclamar. Ele é um retratista dessa realidade e ajudou a criar essa realidade para nós. Dalton nos deu as lentes para ver Curitiba”, diz. Leia, a seguir, a entrevista de Caetano W. Galindo sobre a obra de Dalton Trevisan.
Como se iniciou a sua educação sentimental do vampiro? Foi amor à primeira mordida?
Foi amor à primeira mordida, sim. Lembro das primeiras leituras na escola: “Uma vela para Dario”, algumas coisas de “Morte na praça”... Logo depois, li “O vampiro de Curitiba” e “A polaquinha”. Foi imersão e perdição total. Fascínio, acima de tudo.
O que diferencia Dalton de outros contistas brasileiros de sua época?
O que sei é o que o diferencia de todos os contistas. Alguém com uma visão de muito própria, um recorte temático muito singular, uma linguagem toda sua, com uma investigação formal absolutamente dele, com noções muito fortes de inovação e tradição. Ele é um escritor que será sempre singular, muito difícil de comparar com qualquer outro.
Quais os critérios utilizados por Dalton para escolher os contos que reunia em antologias? Vocês seguiram esses critérios e o que adicionaram?
Ele tentou mais ou menos representar a sua obra toda. Nós seguimos um critério parecido. A gente queria que todos os livros fossem representados, assim como as facetas temáticas e estilísticas dele. Isso porque a gente tem um grande desejo de que essa antologia seja um portal para novos leitores, um cartão de apresentação.
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Vocês afirmam, no posfácio da antologia, que Dalton concebeu, com a própria obra, um “imenso ”. Que elementos podem ser considerados como os pilares desse ? E quais foram sendo adicionados ao longo das décadas?
O grande pilar sempre foi Machado (de Assis), depois (James) Joyce, (J.D.) Salinger, (Anton) Chékhov e (Paul) Léautaud. Como foi um escritor que teve quase sete décadas de produção literária contínua, ele foi se deixando permear por esse mundo novo. Novas realidades na cidade, as igrejas evangélicas barulhentas, a chegada do crack em Curitiba: a mudança do ambiente urbano.
Em alguns contos, Dalton faz reflexões, algumas bem mordazes, sobre aspectos da própria obra. Era uma tentativa de reduzir o impacto de eventuais críticas? Ou era porque pertencia à natureza dele, como uma cobra que morde o próprio rabo?
Acho que ele não queria reduzir o impacto. O que sinto na voz que narra esses textos é um sujeito que está num lugar de uma certa tranquilidade quanto ao que já produziu e um pouco fascinado pelas reações. Quando ele fala, por exemplo, de defeitos, ele já fez as pazes com estes defeitos. É um lugar muito privilegiado, que vai possibilitar inclusive que a literatura dele, nas décadas finais, vá para lugares ainda muito novos e muito diferentes. Ele fez o comentário da cobra que morde o próprio rabo, eu acho que é o mais perfeito de todos. Em sendo um obsessivo releitor, revisor, reescritor, ele também teria que ser um obsessivo reanalisador da própria obra. Ele era um ruminador. Alguém que pensava no que estava fazendo, pensava em pensar no que estava fazendo, pensava sobre pensar em pensar no que estava fazendo e isso acabava se transformando também nesse tipo de autocrítica constante.
Por que as “ministórias” podem ser consideradas integrantes de uma fase revolucionária da obra do escritor?
Olha, eu sou suspeito para falar das ministórias, primeiro por uma questão de cronologia. Elas começam a aparecer ali no começo dos anos 1990, quando eu tô cursando Letras na (Universidade) Federal do Paraná, a uma quadra de onde era, então, a casa do Trevisan. Eu comprava os livros em livrarias que ficavam no mesmo perímetro, estava muito imerso nesse mundo do Trevisan. Você está em formação, pensando literatura aos 20, 21 anos de idade e, de repente, começam a aparecer esses livros de um escritor que já era uma figura canônica, alguém que a gente associava ao ado, que já tinha sido tudo que poderia ser. E, de repente, o cara diz: "Não, quer ver? Toma essa!”. Não havia onda de mini-contos no Brasil, ninguém falava em micro contos. E ele me surge com essas coisas que, além de tudo, eram reescritos. E você reconhecia as ceninhas. Mesmo que a cena não viesse de um conto específico, ela já parecia ter vindo de um conto. Essa reelaboração, essa depuração do próprio universo, às vezes continhos de duas frases, uma frase, foi realmente muito chocante para a gente naquele momento. E, agora, relendo a obra toda, não consigo alterar essa sensação. Ele estava se reinventando de uma maneira muito radical, inventando uma nova forma dentro da literatura brasileira e usando essa possibilidade para reabordar a própria obra de uma maneira muito mais radical do que já vinha fazendo. De fato, é um movimento sem paralelo na história da literatura brasileira. E, talvez, da literatura, ponto.
Dalton Trevisan é referenciado como um “obsessivo” leitor de Machado de Assis. Como a obra de Machado, no estilo e na temática, se reflete na obra dele?
Eu acho que os dois tinham um fascínio pela vida urbana, pelo detalhe psicológico, pela psicologia feminina. No caso do Dalton, isso é levado a extremos. Num certo sentido, ele é irmão de procedimento do Machado. Os dois faziam a mesma coisa nos seus tempos. O vocabulário do Machado, que ele seleciona e lista as palavras em folhas de papel, já são palavras que ele vê como tingidas de um dado de antiguidade: ele quer esse exótico, esse desvio. Então é um dado muito curioso, né? E muito trevisaniano, né? O Dalton é o cara que se dirige à notícia de jornal popular e a novela sentimental e erótica, pelo que elas são, mas também pelo afastamento que ele tem e transforma essas coisas pelo grau de distância em que se coloca, com ironia e sofisticação.
O que Dalton trazia na ponta da língua? Quais palavras são marcas registradas dele?
Inúmeras. Gosto do fato de que os personagens dele nunca dizem os óculos, nem o óculos, como quase todo mundo. Eles falam ‘óculo’. Desgracida é, obviamente, uma palavra muito Trevisan. Gosto muito de fatal, com o sentido adverbial: em vez de fatalmente, os personagens dizem fatal. E o amor pelo diminutivo, que eu compartilho. Dalton colocou uma marca muito grande no nosso vocabulário.